segunda-feira, 9 de abril de 2012

da lapiseira ao formão

Nesta dimensão é só limonada! Tive dois ótimos anunciadores. Me preparo, penso, imagino, desenho e meço. Porém, os interstícios e deixo pro dia; isto, já é uma dimensão de anunciação se misturando na outra.
A partir disso, é mais artesania. Escultura. Sedição. Até que, simplesmente não penso.
Me dispenso.


domingo, 11 de dezembro de 2011

o comércio de morangos no Arroio do Padre

primeira parte: acendendo a luz

Podemos pensar, a partir da teoria social de Marx, em duas lógicas de atribuição de valor para as 'mercadorias': a que considera o valor de uso (valor do trabalho em si) e aquela que diz respeito ao valor de troca (este agenciado ou, mais modernamente dito, coisificado no dinheiro). Visto isso, é possível extrapolar que: podemos, diretamente, relacionar valor de troca a lógica capitalista e valor de uso a lógica tradicionalista.

Como etnografamos em uma comunidade de forte confissão Luterana, é necessário considerarmos aqui algo sobre a religião protestante como um ponto de relação das duas lógicas das quais falamos acima.

Sabemos que, propondo uma reforma na teoria de Marx, Weber aponta que a confissão luterana, ou a ética protestante, é o maior impulso para o desenvolvimento do capitalismo moderno. Ou seja, Weber no diz que o regramento da lógica do valor de uso, este bastante intenso nas comunidades protestantes, pela lógica do 'trabalho espiritual' diário e cotidiano, potencializa a acumulação moderna de capital.
Vemos que Weber nos aponta um relacionamento de lógicas, certo? O ponto relacional é a Religião.

Ora, se imaginarmos uma dominação das ações, ou melhor, a dominação perene de determinadas disposições nos atos cotidianos das pessoas, como uma dominação do capital, por exemplo, podemos perder diversas outras possíveis combinações de disposições. Ou, de forma mais simples, acreditamos que  um indivíduo pode performar, durante alguns instantes, apenas como um mero observador em um campo de batalha e, isso, pode nos encaminhar a perceber a invenção posta nas ações cotidianas das pessoas.

Tentamos agora mostrar um pouco de como isso acontece.

Segunda parte: a venda de morangos

No município do Arroio do Padre, situado a noroeste da cidade de Pelotas e no Sul do Rio Grande do Sul, acontece, cotidianamente, o comércio de produtos cultivados naquele município. A parte da qual nos ocupamos aqui diz respeito ao comércio de morangos. Produzidos por moradores nativos, os morangos são, em Arroio, comercializados com os brasileiros (assim são chamados os estrangeiros que trabalham por lá). A fatia da troca a qual nos referimos aqui é o comércio de morangos realizado entre os alunos do município e os professores da rede escolar.
“As tratativas comerciais começam sempre em meados de outubro. Os primeiros morangos são realmente impressionantes. Enormes e suculentos... são de um vermelho denso, possuem preços bastante atrativos e se vendem aos quilos.” [trecho de diário de campo]
Assim, em meados de outubro, na rede municipal de Arroio do Padre, mais especificamente, na sala dos professores da Escola Benjamim Constant, podemos evidenciar uma combinação de lógicas. Morangos produzidos em comunidade, através do trabalho da parentela, por exemplo, são trocados por dinheiro. Obviamente, esta operação é realizada também pelas crianças. Porém, ao contrario do que pode se imaginar, elas ficam com grande parte do dinheiro. A parte em dinheiro funciona, principalmente para os meninos, como prêmio pela barganha bem realizada. Esta parte é, em valor, diretamente proporcional ao lucro na barganha, ou seja, quanto melhor o negócio, maior a parte do ‘atravessador’. Ainda, vemos que este ‘atravessamento’ é, também, muito mais do que isso: após a confirmação (rito de passagem luterano para a fase espiritual adulta), são os meninos os responsáveis por assumir os negócios da família. Eles passam a representar, na espera dos negócios, aquela família para a comunidade e, também, para fora desta.
Enfim, para os alunos: às vezes um treinamento da barganha, por outras um brinquedo, por outras um maior lucro e outras possíveis trocas por balas, refrigerantes e chips (verdadeira febre entre as crianças no Arroio do Padre) -  assim funciona o comércio de morangos. Para os professores: um bom negócio, praticidade, uma forma de realizar seus desejos gastronômicos, assim, também, funciona o comércio de morangos, alí.

E isso não é tudo, como já dizia o mestre.

sobre o cotidiano das políticas públicas no Rincão da Cruz: os quilombolemater

A professora Priscila Cruz nos descreve com muita competência a relação entre saber científico e verdade absoluta. O processo de normatização, segundo a autora, aparece organizado em uma Política Pública. Além disso, a professora também nos fala (nos termos de Foucault) sobre uma “inversão funcional das disciplinas”, esta responsável pela ascensão, no discurso cotidiano, de uma rede de vigilância. Ou seja, segundo Cruz, é como se não existisse Estado em si, mas sim, relações de poder e saber, articuladas como verdade no discurso cotidiano. Estas relações estariam postas por uma vontade de verdade, termo que Foucault utiliza para designar algo como a vontade de existência de um único ponto de vista possível, ou melhor, a inexorável possibilidade de um único mundo possível.

Até este ponto, estamos afinados com a autora. Porém, nos perguntamos: será que esta vontade de verdade consegue, efetivamente, ser levada a cabo? Por que estamos sempre reformando as leis? E mais ainda, será que, em relação à prática pedagógica que a autora sugere, quando procuramos adaptar um discurso a demandas de Políticas Públicas, não estamos jogando também o ‘jogo da reprodução’? Assim, de que adiantaria conhecer o jogo relacional descrito pela autora se iríamos, exatamente como nos aponta Foucault, reproduzi-lo?
Bom, procuramos agora, a partir de dados etnográficos de nossa pesquisa com a comunidade quilombola do Rincão da Cruz, responder as questões que nós mesmos levantamos.


Destacamos aqui um trecho de diário de campo. Este diz respeito à pergunta que o etnógrafo realiza, a uma quilombola, sobre possíveis mudanças que aconteciam na vida dela em função da movimentação de pesquisadores e agentes de Estado na região:

Maria me disse que continuava batalhando e que sua vida não havia mudado nada: “... não vai nem pra frente e nem pra trás”. Porém quando começamos a falar sobre a Emater em função de uma frase a respeito das suas plantações “a Emater... esses quilombolemater... deram semente para gente” – ela logo disse que era “interessante ... a vida mudou muito... eles ajudam muito a gente”. Ainda: “porque se não fossem eles nós não teríamos casa, nós estaríamos morando em uma casa de pau... de madeira aí”.

Entre inúmeros questionamentos que inferimos ao texto acima, destacamos: o que seriam quilombolemater? Assim, em nossa resposta, poderíamos dizer: apenas uma variação do conceito quilombola. Certo? Dessa forma, adaptaríamos a proposição de nosso nativo ao nosso quadro analítico. Bom, esta é uma possibilidade de resposta para pergunta. Vejamos outra possibilidade de pergunta: O que o conceito quilombolemater exprime? Que mundo? Assim, observamos que a  palavra quilombolemater embaralha o nosso quadro analítico, no qual, quilombola é quilombola e ‘Emater’ é ‘Emater”, a saber, este último, o agente da Associação Rio-grandense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural. Ora,  nos parece que a palavra destacada acima, aponta um ‘desentendimento conceitual’de regras que regulamentam ‘outro mundo’, a saber, o mundo do pesquisador-cienstista. Certo? Aquele desentendimento forma, então, uma proposição, ou melhor, uma nova conceituação -  uma invenção conceitual cotidiana.
Bom, guardemos por um instante o ‘desentendimento’ de Maria e, vejamos outro ‘desentendimento’, a saber, o do próprio pesquisador em campo.

Se observarmos, através do discurso de Maria, a posição do próprio pesquisador, vemos que esta vai de etnógrafo a quilombolemater. Ou seja, quando Maria diz que “a vida não mudou muito” fala ao etnógrafo, porém, quando ela apercebe que o etnógrafo é de fora da comunidade, um cientista, tal qual ‘os Emater’, enaltece o trabalho realizado alí. Quer dizer, Maria percebe o quadro analítico escondido pelo pesquisador e procura fazê-lo funcionar. Certo?
Vejamos então: tal movimento discursivo provoca um desentendimento, por parte do etnógrafo em campo, de sua própria posição na relação com Maria. De etnógrafo a quilombolemater – eis o desentendido.

Ora, o que queremos dizer sobre estes desentendimentos: a forma pela qual Maria desentende o Estado, posto pela política pública realizada no discurso do pesquisador, não é a mesma pela qual o etnógrafo desentende o mesmo Estado, este, agora, realizado pelo discurso de Maria. Ou seja, o próprio desentendimento, aqui, é desentendido.

Dessa forma, é exatamente este desentendimento desentendido que nos aponta que a diferença é de mundos e não apenas de significado.

Enfim, respondendo, a partir do exemplo etnográfico que trazemos aqui, as perguntas que colocamos no início deste texto, dizemos: não nos parece, em nosso ‘caso etnográfico’ que a vontade de verdade seja, de fato, levada a cabo. Assim, é exatamente por isso que as leis estão inexoravelmente se reformando na procura de estabilização para (in)determinadas posições, como a dos quilombolas, por exemplo. Também, acreditamos que, se ‘reativarmos os saberes locais’, movimento empreendido ao modo de Foucault, contra os efeitos intrínsecos de poder postos pela hierarquização do conhecimento científico, estaremos, inexoravelmente, colocando em xeque a instituição escolar e, por que não dizer, boa parte da própria teoria foulcaultiana da ‘vigilância’.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

'Saudade'

O compromisso com a magia aumenta. Pq me desloca o olhar o peso desse negócio que me pus. Então, o que faço?!: olho bastante pra ti, pra mim e pra todos nós (e te vejo). Ali onde me importa, onde te desejo. (vejo...)

terça-feira, 19 de abril de 2011

aos amigos da Educação do Campo

A construção da 'minha memória coletiva'

'Pessoal' (Coordenadores de pólo, professores efetivos, professores pesquisadores, tutores, alunos e, de forma mais 'chegada', gurias de Santo Antônio da Patrulha): ao final deste eixo escrevo no intuito de parabenizá-los pelo sucesso obtido, pois, foi com imensa dedicação que concluímos esta difícil e instigante empreitada. Então, a todos, incluindo a mim, parabéns
Seguindo, enfatizo que as memórias que eu apresento por aqui dizem respeito a nossa coletividade em ação. O que quero dizer com isso?! Que me concentro aqui em descrever alguns momentos particulares que me levaram a produzir conhecimento, juntamente com meus ‘colegas de moodle’, a respeito de algumas questões que envolvem, de uma forma mais ampla, o EAD e a Educação do Campo. 
De novo, então, darei uma 'certa prioridade' as gurias com os quais tive um contato mais próximo, para falar sobre aquelas questões.
Sobre as instrumentalidades do moodle, no que concerne de nossas dificuldades e conquistas, lembro de conversar com a Adriana dos Santos, sobre o problema inicial das senhas de acesso, o que acarretava atraso na entrega dos trabalhos. Acredito que tal problema tenha também afligido Cleusa e Gioconda que, como eu, chegaram um pouco depois. Como adentrei à tutoria uma semana antes do início das aulas, creio que as angustias delas, em determinado momento, foram também as minhas. Do mesmo modo, a cada trabalho entregue por elas e, na minha leitura e retorno daqueles, era como se a angústia se transformasse em satisfação na continuidade de nosso processo.
Sobre as questões ‘internéticas’ da linguagem, agradeço muito a Adriana de Oliveira pelas conversas que me fizeram atualizar idéias já há algum tempo desenvolvidas na lingüística. É sempre muito produtivo pensar sobre o ambiente virtual e seu texto verbal e não verbal escrito, pelo qual ‘dizemos’ nosso trabalho.
Com Andressa Medeiros, lembro de conversar sobre a importância do ‘pensamento coletivo’, no momento que ela buscava estratégias para realização de um dos trabalhos em grupo. Já com Bruna, discuti o processo de orientação dos alunos no curso. Redescobrimos que tratamos aqui da potencilaização de um processo de produção coletiva, e que um mero produto, cada vez importa menos.
Ana Flavia, Ana Paula Corteletti, Anajara, Andressa Nunes, Bárbara, Claudine, Daniela Portal, Eva, Fernanda dos Santos e Helemari comprovaram que através de seus trabalhos foram capazes de grandes conversas. Isto me levou a imaginar que, realmente, a anunciação e reanunciação de uma idéia são bem menos importantes que a sua realização de fato.
Carmem Patrícia me mostrou que, do ‘alto de meus 33 anos’, “eu não sou jovem de mais pra saber tudo”, como nos diz Oscar Wilde. Sua experiência e tranqüilidade saltaram aos olhos e me apontaram um ótimo caminho a seguir. Já com Célia, percebi que em um ambiente virtual, com inúmeras linhas de fuga possíveis, a organização é uma ótima aliada e, em Cibeli, encontrei uma futura aliada com incríveis habilidades em informática, o que me lembrou de minhas parcas habilidades.
Gisela me mostrou que para falar de Educação e Cibercultura devemos fazê-lo a partir de nossos pés no chão e que, se fizermos isso com humildade, chegaremos tão longe quanto Elaine é capaz de nos inspirar e apontar em seus trabalhos.
Com Juliana Souza Porfírio fui ‘obrigado’ a reler Paulo Freire, observando que o espírito de sua obra ainda nos é extremamente relevante, mesmo em ‘tempos de informática’. E Ainda, com Luciana Assis da Silveira, percebi que realmente devemos levar a sério o que as pessoas dizem quando realizamos uma entrevista, ou seja, que a história dos historiadores pode não coincidir com o ponto de vista das pessoas com as quais mantemos uma relação social de entrevista.
Enfim, estas são apenas algumas memórias de caráter coletivo que escolhi para descrever um pouco do meu ponto de vista do Eixo I. Memórias que, acredito, perpassam possíveis questões problemáticas do EAD e da Educação do Campo. Espero continuar contando com a ajuda de todos nesta produção coletiva. Como sempre, estou por aqui para uma boa conversa.

Grande abraço e sigamos adiante!

Camilo

terça-feira, 5 de abril de 2011

por um cotidiano prudente: um pequeno grande texto


Introdução à vida não-fascista
Michel Foucault

Preface in: Gilles Deleuze e Félix Guattari. Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia, New York, Viking Press, 1977, pp. XI-XIV. Traduzido por wanderson flor do nascimento.

Durante os anos 1945-1965 (falo da Europa), existia uma certa forma correta de pensar, um certo estilo de discurso político, uma certa ética do intelectual. Era preciso ser unha e carne com Marx, não deixar seus sonhos vagabundearem muito longe de Freud e tratar os sistemas de signos - e significantes - com o maior respeito. Tais eram as três condições que tornavam aceitável essa singular ocupação que era a de escrever e de enunciar uma parte da verdade sobre si mesmo e sobre sua época.
Depois, vieram cinco anos breves, apaixonados, cinco anos de júbilo e de enigma. Às portas de nosso mundo, o Vietnã, o primeiro golpe em direção aos poderes constituídos. Mas aqui, no interior de nossos muros, o que exatamente se passa? Um amálgama de política revolucionária e anti-repressiva? Uma guerra levada por dois frontes - a exploração social e a repressão psíquica? Uma escalada da libido modulada pelo conflito de classes? É possível. De todo modo, é por esta interpretação familiar e dualista que se pretendeu explicar os acontecimentos destes anos. O sonho que, entre a Primeira Guerra Mundial e o acontecimento do fascismo, teve sob seus encantos as frações mais utopistas da Europa - a Alemanha de Wilhem Reich e a França dos surrealistas - retornou para abraçar a realidade mesma: Marx e Freud esclarecidos pela mesma incandescência.
Mas é isso mesmo o que se passou? Era uma retomada do projeto utópico dos anos trinta, desta vez, na escala da prática social? Ou, pelo contrário, houve um movimento para lutas políticas que não se conformavam mais ao modelo prescrito pela tradição marxista? Para uma experiência e uma tecnologia do desejo que não eram mais freudianas? Brandiram-se os velhos estandartes, mas o combate se deslocou e ganhou novas zonas. O Anti-Édipo mostra, pra começar, a extensão do terreno ocupado. Porém, ele faz muito mais. Ele não se dissipa na difamação dos velhos ídolos, mesmo se divertindo muito com Freud. E, sobretudo, nos incita a ir mais longe.
Seria um erro ler o Anti-Édipo como a nova referência teórica (vocês sabem, essa famosa teoria que se nos costuma anunciar: essa que vai englobar tudo, essa que é absolutamente totalizante e tranquilizadora, essa, nos afirmam, “que tanto precisamos” nesta época de dispersão e de especialização, onde a “esperança” desapareceu). Não é preciso buscar uma “filosofia” nesta extraordinária profusão de novas noções e de conceitos-surpresa. O Anti-Édipo não é um Hegel pomposo. Penso que a melhor maneira de ler o Anti-Édipo é abordá-lo como uma “arte”, no sentido em que se fala de “arte erótica”, por exemplo. Apoiando-se sobre noções aparentemente abstratas de multiplicidades, de fluxo, de dispositivos e de acoplamentos, a análise da relação do desejo com a realidade e com a “máquina” capitalista contribui para responder a questões concretas. Questões que surgem menos do porque das coisas do que de seu como. Como introduzir o desejo no pensamento, no discurso, na ação? Como o desejo pode e deve desdobrar suas forças na esfera do político e se intensificar no processo de reversão da ordem estabelecida? Ars erotica, ars theoretica, ars politica.
Daí os três adversários aos quais o Anti-Édipo se encontra confrontado. Três adversários que não têm a mesma força, que representam graus diversos de ameaça, e que o livro combate por meios diferentes.
1) Os ascetas políticos, os militantes sombrios, os terroristas da teoria, esses que gostariam de preservar a ordem pura da política e do discurso político. Os burocratas da revolução e os funcionários da verdade.
2) Os lastimáveis técnicos do desejo - os psicanalistas e os semiólogos que registram cada signo e cada sintoma, e que gostariam de reduzir a organização múltipla do desejo à lei binária da estrutura e da falta.
3) Enfim, o inimigo maior, o adversário estratégico (embora a oposição do AntiÉdipo a seus outros inimigos constituam mais um engajamento político): o fascismo. E não somente o fascismo histórico de Hitler e de Mussolini - que tão bem souberam mobilizar e utilizar o desejo das massas -, mas o fascismo que está em nós todos, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora.
Eu diria que o Anti-Édipo (que seus autores me perdoem) é um livro de ética, o primeiro livro de ética que se escreveu na França depois de muito tempo (é talvez a razão pela qual seu sucesso não é limitado a um “leitorado” [“lectorat”] particular: ser anti-Édipo tornou-se um estilo de vida, um modo de pensar e de vida). Como fazer para não se tornar fascista mesmo quando (sobretudo quando) se acredita ser um militante revolucionário? Como liberar nosso discurso e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres do fascismo? Como expulsar o fascismo que está incrustado em nosso comportamento? Os moralistas cristãos buscavam os traços da carne que estariam alojados nas redobras da alma. Deleuze e Guattari, por sua parte, espreitam os traços mais ínfimos do fascismo nos corpos.
Prestando uma modesta homenagem a São Francisco de Sales, se poderia dizer que o Anti-Édipo é uma Introdução à vida não fascista
Essa arte de viver contrária a todas as formas de fascismo, que sejam elas já instaladas ou próximas de ser, é acompanhada de um certo número de princípios essenciais, que eu resumiria da seguinte maneira se eu devesse fazer desse grande livro um manual ou um guia da vida cotidiana:
- Libere a ação política de toda forma de paranóia unitária e totalizante;
- Faça crescer a ação, o pensamento e os desejos por proliferação, justaposição e
disjunção, mais do que por subdivisão e hierarquização piramidal;
- Libere-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, a castração, a falta, a lacuna), que o pensamento ocidental, por um longo tempo, sacralizou como forma do poder e modo de acesso à realidade. Prefira o que é positivo e múltiplo; a diferença à uniformidade; o fluxo às unidades; os agenciamentos móveis aos sistemas. Considere que o que é produtivo, não é sedentário, mas nômade;
- Não imagine que seja preciso ser triste para ser militante, mesmo que a coisa que se combata seja abominável. É a ligação do desejo com a realidade (e não sua fuga, nas formas da representação) que possui uma força revolucionária;
- Não utilize o pensamento para dar a uma prática política um valor de verdade; nem a ação política, para desacreditar um pensamento, como se ele fosse apenas pura especulação. Utilize a prática política como um intensificador do pensamento, e a análise como um multiplicador das formas e dos domínios de intervenção da ação política;
- Não exija da ação política que ela restabeleça os “direitos” do indivíduo, tal como a filosofia os definiu. O indivíduo é o produto do poder. O que é preciso é “desindividualizar” pela multiplicação, o deslocamento e os diversos agenciamentos. O grupo não deve ser o laço orgânico que une os indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador de “desindividualização”;
- Não caia de amores pelo poder.
Poder-se-ia dizer que Deleuze e Guattari amam tão pouco o poder que eles buscaram neutralizar os efeitos de poder ligados a seu próprio discurso. Por isso os jogos e as armadilhas que se encontram espalhados em todo o livro, que fazem de sua tradução uma verdadeira façanha. Mas não são as armadilhas familiares da retórica, essas que buscam seduzir o leitor, sem que ele esteja consciente da manipulação, e que finda por assumir a causa dos autores contra sua vontade. As armadilhas do Anti-Édipo são as do humor: tanto os convites a se deixar expulsar, a despedir-se do texto batendo a porta. O livro faz pensar que é apenas o humor e o jogo aí onde, contudo, alguma coisa de essencial se passa, alguma coisa que é da maior seriedade: a perseguição a todas as formas de fascismo, desde aquelas, colossais, que nos rodeiam e nos esmagam até aquelas formas pequenas que fazem a amena tirania de nossas vidas cotidianas.
 (1) Francisco de Sales. Introduction à la vie devote (1064). Lyon: Pierre Rigaud, 1609.

Texto disponível em Espaço Michel Foucault – www.filoesco.unb.br/foucault