domingo, 11 de dezembro de 2011

o comércio de morangos no Arroio do Padre

primeira parte: acendendo a luz

Podemos pensar, a partir da teoria social de Marx, em duas lógicas de atribuição de valor para as 'mercadorias': a que considera o valor de uso (valor do trabalho em si) e aquela que diz respeito ao valor de troca (este agenciado ou, mais modernamente dito, coisificado no dinheiro). Visto isso, é possível extrapolar que: podemos, diretamente, relacionar valor de troca a lógica capitalista e valor de uso a lógica tradicionalista.

Como etnografamos em uma comunidade de forte confissão Luterana, é necessário considerarmos aqui algo sobre a religião protestante como um ponto de relação das duas lógicas das quais falamos acima.

Sabemos que, propondo uma reforma na teoria de Marx, Weber aponta que a confissão luterana, ou a ética protestante, é o maior impulso para o desenvolvimento do capitalismo moderno. Ou seja, Weber no diz que o regramento da lógica do valor de uso, este bastante intenso nas comunidades protestantes, pela lógica do 'trabalho espiritual' diário e cotidiano, potencializa a acumulação moderna de capital.
Vemos que Weber nos aponta um relacionamento de lógicas, certo? O ponto relacional é a Religião.

Ora, se imaginarmos uma dominação das ações, ou melhor, a dominação perene de determinadas disposições nos atos cotidianos das pessoas, como uma dominação do capital, por exemplo, podemos perder diversas outras possíveis combinações de disposições. Ou, de forma mais simples, acreditamos que  um indivíduo pode performar, durante alguns instantes, apenas como um mero observador em um campo de batalha e, isso, pode nos encaminhar a perceber a invenção posta nas ações cotidianas das pessoas.

Tentamos agora mostrar um pouco de como isso acontece.

Segunda parte: a venda de morangos

No município do Arroio do Padre, situado a noroeste da cidade de Pelotas e no Sul do Rio Grande do Sul, acontece, cotidianamente, o comércio de produtos cultivados naquele município. A parte da qual nos ocupamos aqui diz respeito ao comércio de morangos. Produzidos por moradores nativos, os morangos são, em Arroio, comercializados com os brasileiros (assim são chamados os estrangeiros que trabalham por lá). A fatia da troca a qual nos referimos aqui é o comércio de morangos realizado entre os alunos do município e os professores da rede escolar.
“As tratativas comerciais começam sempre em meados de outubro. Os primeiros morangos são realmente impressionantes. Enormes e suculentos... são de um vermelho denso, possuem preços bastante atrativos e se vendem aos quilos.” [trecho de diário de campo]
Assim, em meados de outubro, na rede municipal de Arroio do Padre, mais especificamente, na sala dos professores da Escola Benjamim Constant, podemos evidenciar uma combinação de lógicas. Morangos produzidos em comunidade, através do trabalho da parentela, por exemplo, são trocados por dinheiro. Obviamente, esta operação é realizada também pelas crianças. Porém, ao contrario do que pode se imaginar, elas ficam com grande parte do dinheiro. A parte em dinheiro funciona, principalmente para os meninos, como prêmio pela barganha bem realizada. Esta parte é, em valor, diretamente proporcional ao lucro na barganha, ou seja, quanto melhor o negócio, maior a parte do ‘atravessador’. Ainda, vemos que este ‘atravessamento’ é, também, muito mais do que isso: após a confirmação (rito de passagem luterano para a fase espiritual adulta), são os meninos os responsáveis por assumir os negócios da família. Eles passam a representar, na espera dos negócios, aquela família para a comunidade e, também, para fora desta.
Enfim, para os alunos: às vezes um treinamento da barganha, por outras um brinquedo, por outras um maior lucro e outras possíveis trocas por balas, refrigerantes e chips (verdadeira febre entre as crianças no Arroio do Padre) -  assim funciona o comércio de morangos. Para os professores: um bom negócio, praticidade, uma forma de realizar seus desejos gastronômicos, assim, também, funciona o comércio de morangos, alí.

E isso não é tudo, como já dizia o mestre.

sobre o cotidiano das políticas públicas no Rincão da Cruz: os quilombolemater

A professora Priscila Cruz nos descreve com muita competência a relação entre saber científico e verdade absoluta. O processo de normatização, segundo a autora, aparece organizado em uma Política Pública. Além disso, a professora também nos fala (nos termos de Foucault) sobre uma “inversão funcional das disciplinas”, esta responsável pela ascensão, no discurso cotidiano, de uma rede de vigilância. Ou seja, segundo Cruz, é como se não existisse Estado em si, mas sim, relações de poder e saber, articuladas como verdade no discurso cotidiano. Estas relações estariam postas por uma vontade de verdade, termo que Foucault utiliza para designar algo como a vontade de existência de um único ponto de vista possível, ou melhor, a inexorável possibilidade de um único mundo possível.

Até este ponto, estamos afinados com a autora. Porém, nos perguntamos: será que esta vontade de verdade consegue, efetivamente, ser levada a cabo? Por que estamos sempre reformando as leis? E mais ainda, será que, em relação à prática pedagógica que a autora sugere, quando procuramos adaptar um discurso a demandas de Políticas Públicas, não estamos jogando também o ‘jogo da reprodução’? Assim, de que adiantaria conhecer o jogo relacional descrito pela autora se iríamos, exatamente como nos aponta Foucault, reproduzi-lo?
Bom, procuramos agora, a partir de dados etnográficos de nossa pesquisa com a comunidade quilombola do Rincão da Cruz, responder as questões que nós mesmos levantamos.


Destacamos aqui um trecho de diário de campo. Este diz respeito à pergunta que o etnógrafo realiza, a uma quilombola, sobre possíveis mudanças que aconteciam na vida dela em função da movimentação de pesquisadores e agentes de Estado na região:

Maria me disse que continuava batalhando e que sua vida não havia mudado nada: “... não vai nem pra frente e nem pra trás”. Porém quando começamos a falar sobre a Emater em função de uma frase a respeito das suas plantações “a Emater... esses quilombolemater... deram semente para gente” – ela logo disse que era “interessante ... a vida mudou muito... eles ajudam muito a gente”. Ainda: “porque se não fossem eles nós não teríamos casa, nós estaríamos morando em uma casa de pau... de madeira aí”.

Entre inúmeros questionamentos que inferimos ao texto acima, destacamos: o que seriam quilombolemater? Assim, em nossa resposta, poderíamos dizer: apenas uma variação do conceito quilombola. Certo? Dessa forma, adaptaríamos a proposição de nosso nativo ao nosso quadro analítico. Bom, esta é uma possibilidade de resposta para pergunta. Vejamos outra possibilidade de pergunta: O que o conceito quilombolemater exprime? Que mundo? Assim, observamos que a  palavra quilombolemater embaralha o nosso quadro analítico, no qual, quilombola é quilombola e ‘Emater’ é ‘Emater”, a saber, este último, o agente da Associação Rio-grandense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural. Ora,  nos parece que a palavra destacada acima, aponta um ‘desentendimento conceitual’de regras que regulamentam ‘outro mundo’, a saber, o mundo do pesquisador-cienstista. Certo? Aquele desentendimento forma, então, uma proposição, ou melhor, uma nova conceituação -  uma invenção conceitual cotidiana.
Bom, guardemos por um instante o ‘desentendimento’ de Maria e, vejamos outro ‘desentendimento’, a saber, o do próprio pesquisador em campo.

Se observarmos, através do discurso de Maria, a posição do próprio pesquisador, vemos que esta vai de etnógrafo a quilombolemater. Ou seja, quando Maria diz que “a vida não mudou muito” fala ao etnógrafo, porém, quando ela apercebe que o etnógrafo é de fora da comunidade, um cientista, tal qual ‘os Emater’, enaltece o trabalho realizado alí. Quer dizer, Maria percebe o quadro analítico escondido pelo pesquisador e procura fazê-lo funcionar. Certo?
Vejamos então: tal movimento discursivo provoca um desentendimento, por parte do etnógrafo em campo, de sua própria posição na relação com Maria. De etnógrafo a quilombolemater – eis o desentendido.

Ora, o que queremos dizer sobre estes desentendimentos: a forma pela qual Maria desentende o Estado, posto pela política pública realizada no discurso do pesquisador, não é a mesma pela qual o etnógrafo desentende o mesmo Estado, este, agora, realizado pelo discurso de Maria. Ou seja, o próprio desentendimento, aqui, é desentendido.

Dessa forma, é exatamente este desentendimento desentendido que nos aponta que a diferença é de mundos e não apenas de significado.

Enfim, respondendo, a partir do exemplo etnográfico que trazemos aqui, as perguntas que colocamos no início deste texto, dizemos: não nos parece, em nosso ‘caso etnográfico’ que a vontade de verdade seja, de fato, levada a cabo. Assim, é exatamente por isso que as leis estão inexoravelmente se reformando na procura de estabilização para (in)determinadas posições, como a dos quilombolas, por exemplo. Também, acreditamos que, se ‘reativarmos os saberes locais’, movimento empreendido ao modo de Foucault, contra os efeitos intrínsecos de poder postos pela hierarquização do conhecimento científico, estaremos, inexoravelmente, colocando em xeque a instituição escolar e, por que não dizer, boa parte da própria teoria foulcaultiana da ‘vigilância’.