domingo, 11 de dezembro de 2011

sobre o cotidiano das políticas públicas no Rincão da Cruz: os quilombolemater

A professora Priscila Cruz nos descreve com muita competência a relação entre saber científico e verdade absoluta. O processo de normatização, segundo a autora, aparece organizado em uma Política Pública. Além disso, a professora também nos fala (nos termos de Foucault) sobre uma “inversão funcional das disciplinas”, esta responsável pela ascensão, no discurso cotidiano, de uma rede de vigilância. Ou seja, segundo Cruz, é como se não existisse Estado em si, mas sim, relações de poder e saber, articuladas como verdade no discurso cotidiano. Estas relações estariam postas por uma vontade de verdade, termo que Foucault utiliza para designar algo como a vontade de existência de um único ponto de vista possível, ou melhor, a inexorável possibilidade de um único mundo possível.

Até este ponto, estamos afinados com a autora. Porém, nos perguntamos: será que esta vontade de verdade consegue, efetivamente, ser levada a cabo? Por que estamos sempre reformando as leis? E mais ainda, será que, em relação à prática pedagógica que a autora sugere, quando procuramos adaptar um discurso a demandas de Políticas Públicas, não estamos jogando também o ‘jogo da reprodução’? Assim, de que adiantaria conhecer o jogo relacional descrito pela autora se iríamos, exatamente como nos aponta Foucault, reproduzi-lo?
Bom, procuramos agora, a partir de dados etnográficos de nossa pesquisa com a comunidade quilombola do Rincão da Cruz, responder as questões que nós mesmos levantamos.


Destacamos aqui um trecho de diário de campo. Este diz respeito à pergunta que o etnógrafo realiza, a uma quilombola, sobre possíveis mudanças que aconteciam na vida dela em função da movimentação de pesquisadores e agentes de Estado na região:

Maria me disse que continuava batalhando e que sua vida não havia mudado nada: “... não vai nem pra frente e nem pra trás”. Porém quando começamos a falar sobre a Emater em função de uma frase a respeito das suas plantações “a Emater... esses quilombolemater... deram semente para gente” – ela logo disse que era “interessante ... a vida mudou muito... eles ajudam muito a gente”. Ainda: “porque se não fossem eles nós não teríamos casa, nós estaríamos morando em uma casa de pau... de madeira aí”.

Entre inúmeros questionamentos que inferimos ao texto acima, destacamos: o que seriam quilombolemater? Assim, em nossa resposta, poderíamos dizer: apenas uma variação do conceito quilombola. Certo? Dessa forma, adaptaríamos a proposição de nosso nativo ao nosso quadro analítico. Bom, esta é uma possibilidade de resposta para pergunta. Vejamos outra possibilidade de pergunta: O que o conceito quilombolemater exprime? Que mundo? Assim, observamos que a  palavra quilombolemater embaralha o nosso quadro analítico, no qual, quilombola é quilombola e ‘Emater’ é ‘Emater”, a saber, este último, o agente da Associação Rio-grandense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural. Ora,  nos parece que a palavra destacada acima, aponta um ‘desentendimento conceitual’de regras que regulamentam ‘outro mundo’, a saber, o mundo do pesquisador-cienstista. Certo? Aquele desentendimento forma, então, uma proposição, ou melhor, uma nova conceituação -  uma invenção conceitual cotidiana.
Bom, guardemos por um instante o ‘desentendimento’ de Maria e, vejamos outro ‘desentendimento’, a saber, o do próprio pesquisador em campo.

Se observarmos, através do discurso de Maria, a posição do próprio pesquisador, vemos que esta vai de etnógrafo a quilombolemater. Ou seja, quando Maria diz que “a vida não mudou muito” fala ao etnógrafo, porém, quando ela apercebe que o etnógrafo é de fora da comunidade, um cientista, tal qual ‘os Emater’, enaltece o trabalho realizado alí. Quer dizer, Maria percebe o quadro analítico escondido pelo pesquisador e procura fazê-lo funcionar. Certo?
Vejamos então: tal movimento discursivo provoca um desentendimento, por parte do etnógrafo em campo, de sua própria posição na relação com Maria. De etnógrafo a quilombolemater – eis o desentendido.

Ora, o que queremos dizer sobre estes desentendimentos: a forma pela qual Maria desentende o Estado, posto pela política pública realizada no discurso do pesquisador, não é a mesma pela qual o etnógrafo desentende o mesmo Estado, este, agora, realizado pelo discurso de Maria. Ou seja, o próprio desentendimento, aqui, é desentendido.

Dessa forma, é exatamente este desentendimento desentendido que nos aponta que a diferença é de mundos e não apenas de significado.

Enfim, respondendo, a partir do exemplo etnográfico que trazemos aqui, as perguntas que colocamos no início deste texto, dizemos: não nos parece, em nosso ‘caso etnográfico’ que a vontade de verdade seja, de fato, levada a cabo. Assim, é exatamente por isso que as leis estão inexoravelmente se reformando na procura de estabilização para (in)determinadas posições, como a dos quilombolas, por exemplo. Também, acreditamos que, se ‘reativarmos os saberes locais’, movimento empreendido ao modo de Foucault, contra os efeitos intrínsecos de poder postos pela hierarquização do conhecimento científico, estaremos, inexoravelmente, colocando em xeque a instituição escolar e, por que não dizer, boa parte da própria teoria foulcaultiana da ‘vigilância’.

Nenhum comentário:

Postar um comentário